Repúblicas urbanas na Baixa Idade Média

Introdução



Ao contrário do que é comum acreditar-se, a República não é um regime político característico da era industrial nem mesmo da época moderna. Desde tempos remotos os homens consideraram o modelo republicano como a alternativa mais justa aos excessos cometidos pelo poder autoritário dos monarcas.
Propondo a governação das comunidades pela eleição dos governantes com recurso ao voto, a república foi marcada ao longo da História, em todas as sociedades que a adoptaram, por períodos de grande progresso e justiça social mas também de instabilidade e recessão. Desde a Grécia Clássica, altura em que os filósofos associaram a ideia de República ao governo democrático da Cidade Estado, passando por Roma onde o regime republicano atravessou momentos de sangrentas lutas civis, o regime republicano esteve quase sempre conotado com o governo do povo e a expressão das suas necessidades.
Reconhecendo-se as virtudes e ensinamentos das experiências republicanas francesas como fundadoras de um modelo laico de republicanismo será importante não esquecer o imenso repertório de experiências e ensinamentos políticos de um dos períodos mais intensos e brilhantes de implantação de comunidades republicanas, a Idade Média. Foi nessa época que muitas comunas urbanas da Europa Ocidental desenvolveram originais percursos de libertação política da opressão exploradora das senhorias medievais, aristocráticas e seculares adoptando um tipo de governação colectiva.
O apontamento abaixo sobre as comunas e repúblicas medievais, pretende contribuir para a divulgação deste fenómeno histórico geralmente pouco estudado e mal compreendido em todas as suas implicações mas certamente um dos mais interessantes e proveitosos em ensinamentos, na passada história europeia.

Origem das repúblicas ou comunas medievais

Chamavam-se comunas às cidades medievais dotadas de direitos e autonomia na sua administração. Segundo alguns autores só se pode considerar comuna nos casos em que monarcas ou senhores feudais concediam o documento de liberdades, a carta comunal. No entanto nem sempre a carta acompanhava o movimento de autonomia, antes era geralmente uma consequência do anseio autonómico e libertário dos moradores, que podia ser expresso de forma pacífica ou violenta.
A origem remota das comunas ou repúblicas medievais estaria, segundo Savigny, nos municípios romanos do Império. Outros autores buscaram porém a sua justificação histórica no ambiente político da Europa Medieval com a formação de uma burguesia influente e dinâmica. O ponto de partida da comuna urbana teria sido a Schutz gilde ou associação mercantil de protecção em que os burgueses se achavam unidos por um juramento de amizade. No entanto para alguns autores alemães a cidade medieval sob o ponto de vista jurídico é semelhante ao domínio senhorial com as muralhas, torres e defesas para não falar já das milícias armadas, não havendo distinção entre a origem das comuna rurais e urbanas na Alemanha.
O movimento libertador levado a efeito pelos habitantes das cidades e burgos medievais mais dinâmicos, desenvolveu-se a partir do século XI no norte de Itália, região onde a mentalidade comercial e a actividade mercantil eram tradicionalmente muito activas, expandindo-se para a Provença e Marselha, França do norte, Flandres e Alemanha. A sua origem deveu-se à necessidade que mercadores e artesãos tiveram de se organizar para defender interesses económicos comuns, desenvolvendo uma actividade mais dinâmica e livre de condicionalismos tributários, judiciais e territoriais.
A este movimento não terá sido, porém, estranho o contexto. As urbes italianas ancestralmente comprometidas com o modelo económico mercantil da Roma Imperial, estimuladas pelo espaço histórico-geográfico do Mediterrâneo Central, responderam à necessidade de defesa de bens e negócios contra os agressores. Acolhiam o contributo de todos para a construção de defesas e muralhas que os punha ao abrigo das investidas de bárbaros e salteadores. Tornava-se necessário construir pontes, estradas, caminhos, muralhas, organizar milícias de defesa ou criar regulamentos e normas.
Na Europa Ocidental, as comunas formaram-se sob a autoridade dos monarcas mas também dos senhores que por vezes as apoiavam. Os primeiros, procurando equilibrar o poder excessivo dos privilegiados contratualizando de forma benévola com as comunidades urbanas os direitos de administração autónoma, a troco de tributos. Surgiram em aglomerados onde existiam condições mais favoráveis ao comércio e à indústria. Noutras regiões como a Flandres, os condes permitiram-lhes o desenvolvimento estimulando comércio e artes, percebendo que a sua prosperidade os beneficiaria também, aumentando os seus rendimentos.
Na maior parte das regiões europeias encontraram porém a resistência dos senhores poderosos, casos da Lombardia, norte da França ou margens do Reno. Em Milão, Cambraia, Colónia e outras cidades episcopais, os burgueses conseguiram obter o seu reconhecimento após lutas difíceis contra os senhores eclesiásticos.
A forma e o poder das comunas variou bastante de zona para zona. Os senhores viam-se obrigados a conceder a carta de comuna. A cidade passava a gozar de larga autonomia, geralmente pagando um tributo. Dispunha do direito de se administrar desde que a respectiva carta tivesse sido confirmada pelo rei, condição necessária em todos os países europeus onde a autoridade do monarca estava politicamente implicada.
Na Alemanha e Itália, atingiram grande expressão e poder dada a ausência de poder imperial ou senhorial. Aí tornaram-se praticamente senhorias colectivas. Na Itália e na França eram governadas por cônsules, na Alemanha por Rathsherren, na França setentrional e nos Países Baixos por Echevins e Jurés, na Inglaterra por Aldermen. Às vezes os magistrados eram ao mesmo tempo autoridades administrativas e judiciais, noutros casos as funções judiciais e administrativas eram exercidas por magistrados distintos.Na Itália, algumas cidades foram governadas por personagens poderosos e caprichosos oriundos da burguesia mas também, e frequentemente, pelos condottieri, chefes de bandos de mercenários, recrutados por quem pagasse mais. Em Veneza, a lei não permitia o uso de armas para fazer a guerra. Os habitantes viram-se obrigados a delegar tal poder, através da assinatura de um contrato ou condotta, de onde o termo condottieri derivou, nestes grupos de mercenários. Estes bandos aguerridos estavam em geral melhor preparados do que as milícias urbanas para fazer a guerra e defender a cidade, por isso os condottieri, conseguiam o apoio das populações para tomar o poder, como aconteceu em Milão com os Visconti e os Sforza. No entanto tais qualidades tornavam-nos simultaneamente perigosos visto que sendo a sua profissão a guerra, o saque era a sua recompensa exigindo frequentemente pela força aquilo que inicialmente não tinha sido acordado oralmente ou por escrito. Entre os mais conhecidos dos condottieri estão familias como os Colonna, os Malatesta ou Orsinis.
A sua organização primitiva não lhes permitiu finalmente resistir a exércitos modernos como os franceses ou espanhóis pelo que a sua decadência se acentuou a partir do século XV e XVI.


Organização e administração

A organização da comuna era a princípio pessoal entre os indivíduos que nela queriam colaborar. Por volta do século XII a comuna evoluiu para um carácter territorial sendo os habitantes da cidade e dos arrabaldes obrigados a prestar um juramento que os colocava sob a sua autoridade. Quem não o fizesse teria de emigrar e desta forma se compreende que a comuna reunia apenas elementos do povo entre os seus membros.
As cidades eram pequenas pátrias com os seus individualismos e rivalidades. Esse patriotismo urbano fez nascer construções como palácios comunais, catedrais góticas e casas de corporações e ofícios que atestavam a riqueza e poder das suas gentes. Os magistrados chefes destas repúblicas tinham em geral extensos poderes judiciários, administrativos e financeiros comandando a milícia comunal, guardando as chaves das portas da cidade e presidindo às reuniões.
Dominavam os territórios vizinhos impondo uma autoridade indiscutível, quando não impiedosa. Herdeiro de uma tradição romana de nobilitas, o popolo grasso das cidades italianas apoiava-se na influência e poder económico conseguido com os seus negócios, para obter o apoio do muito povo que sustentavam. O núcleo essencial era pois constituído por gente da burguesia mas por vezes também pela aristocracia que residia nalgumas cidades. Foi o caso de algumas cidades italianas da França Meridional e Espanha. Em Génova e Veneza chegaram mesmo a envolver-se no comércio e comungar dos mesmos objectivos que a burguesia de negócios. No entanto, era o patriarcado burguês ou cives maiores quem controlava os órgãos de decisão destas repúblicas comunais substituindo na administração territorial os estratos tradicionalmente privilegiados. Em Florença, os representantes das sete artes maiores (de entre as vinte e uma corporações artesanais e comerciais) que agrupavam os grandes negociantes que comerciavam no estrangeiro, apoderaram-se dos cargos municipais afastando a aristocracia.
À frente da administração da comuna figurava um conselho de magistrados denominados pares, jurados ou almotacés. Escolhidos geralmente por eleição apenas entre os burgueses reunidos em assembleia, constituíam o corpo da cidade restaurando muralhas, redigindo ordenanças, proclamações e intervindo na vida económica e jurídica da comunidade. As decisões graves de interesse geral como as que diziam respeito à paz e à guerra eram da competência da assembleia comunal da qual faziam parte todos os habitantes da cidade.
As características destas repúblicas exigiam ainda outro tipo de atributos e órgãos soberanos. Quase todas as comunas possuíam o seu exército ou milícia cujo comando pertencia ao cônsul ou ao maire e nalguns casos na Itália, ao Condottieri. A maioria das comunas erguia o seu palácio comunal, sede do governo e das repartições centrais tendo o campanário como símbolo da autoridade e força da comuna. O sino convocava os homens bons apenas ou todos os habitantes para qualquer reunião ou situação de emergência. Na cave ficavam as prisões. As cidades tinham ainda bandeira e selo.
Entre as diversas cidades que se governaram segundo este modelo republicano contaram-se Siena, Florença, Luca, Génova, ou Veneza na Itália, Arras em França, Bruges e Gand na Flandres e várias cidades na Alemanha como Colónia.


Conflitos e rivalidades internas

Embora dentro da cidade todos fossem considerados iguais, quem dominava nestas repúblicas era, como vimos, uma classe mais destacada, o popolo grasso que controlava com dificuldade os remediados e pobres, o popolo minuto. Com o tempo, os burgueses mais ricos apropriaram-se da vida política e administrativa do burgo, escolhendo os magistrados, fixando os impostos e considerando as funções municipais como bens próprios e transmissíveis dentro das famílias. O que diferenciava esta nova classe dos restantes elementos populares eram também os privilégios, destacando-se as ricas mansões apalaçadas com torre à moda italiana, as vestes e até a corte armada de que muitos já dispunham, procurando defender-se das investidas populares principalmente dos artífices das pequenas corporações.
O popolo minuto alegava já, contra os poderosos, a corrupção, a má justiça, o exagero dos impostos e a má administração financeira além da apropriação ilegítima ou excessiva de poder, do qual se viam injustamente afastados. Na Flandres e Itália, zonas onde os conflitos foram mais frequentes por alturas da recessão do século XIV, os mercadores viram-se na obrigação de partilhar o poder com os artífices, geralmente menos ricos. Na Alemanha, a burguesia comercial conseguiu manter a sua importância, dada a preponderância da sua actividade mercantil sobre os artífices mas na maioria das regiões europeias as lutas internas entre os habitantes das comunas levaram a partir do século XV a uma sujeição progressiva ao poder dos soberanos, que se aproveitavam das revoltas sociais para repor a sua autoridade, retirando direitos e integrando as repúblicas no seu espaço de soberania centralizada.
Nalgumas grandes cidades hanseáticas chegou-se a um triunfo definitivo dos ofícios enquanto em outras estabeleceu-se algum equilíbrio com a divisão dos cargos municipais. Numa pequena parte das cidades o patriciado reforçou ainda mais o seu poder. Em cidades como Zurique ou Colónia continuaram as mesmas famílias à frente da cidade alargando a base social de apoio recrutando sectores inferiores da população urbana das artes o que não impediu que a tensão social perdurasse.Tal situação acabou também por provocar lutas internas graves. No final do século XV apenas duas destas repúblicas existiam em Itália, Génova e Veneza.
A História desoculta-nos assim aquela que foi uma das fases mais interessantes da libertação das populações europeias relativamente às tutelas opressivas e conservadoras de reis, senhores e estados. Duma análise mesmo que superficial desta variedade imensa de casos específicos, que surgiram um pouco por todo o lado na passagem da época medieval para a moderna, ressalta por um lado o protagonismo deste movimento comunal urbano para o reforço e centralização do poder real, que se concretizará nos regimes de monarquia absoluta dos séculos XVI a XVIII. Instrumento ao serviço da luta pelo poder entre poderosos, a luta pela libertação das repúblicas medievais permitirá a emergência de formas alternativas de governação, espécie de experimentalismo político de todos aqueles que não se reviam na governação dos poderosos.
Por outro lado, a importância do fenómeno autonómico urbano como percursor de um espírito de libertação das populações sujeitas à opressão. Parecia adivinhar o movimento libertário dos povos e nações que se seguiria séculos mais tarde, à Revolução Francesa e ao Congresso de Viena, apesar dos esforços de centralização imperialista dos governos centrais.
Um ultimo aspecto, próximo cronologicamente deste fenómeno e, de certa forma sua consequência, o contributo deste movimento comunal republicano para a construção de uma mentalidade humanista crítica e cosmopolita que se reencontra e reafirma na matriz individualista e libertadora do Renascimento, época de ouro do brilhantismo individual, mas também da criatividade, inovação e rejuvenescimento do ideal clássico de homem total, completo.